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Entre o brilho do dourado e a sombra do corvo

  • Eduarda Sodré
  • 8 de jul.
  • 4 min de leitura

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Daniel Roseberry, mergulhando fundo nos arquivos da Schiaparelli, ressuscita uma elegância reinventada para o inverno 2025 com a ousada estética “De Volta para o Futuro”. Inspirado nas fotografias parisienses de 1929, antes da ocupação nazista, Roseberry desconstrói o glamour tradicional para projetá-lo no amanhã. Deixando de lado os corsets totalmente rígidos e as formas exageradas da temporada passada, o estilista opta por volumes fluidos e cortes soltos que envolvem o corpo com leveza poética, um sopro de modernidade sobre uma base histórica.


A passarela foi uma ode ao silêncio e à sofisticação contida. Em vez de provocar o olhar com gestos óbvios, a coleção constrói um mistério elegante, como se cada look sussurrasse sua história ao invés de gritar tendências. As primeiras modelos surgem envoltas em camadas de preto absoluto: lã grossa, veludo escovado e organza opaca, compondo silhuetas que alternam entre o exagero gráfico e a fluidez dramática. Há uma reverência silenciosa à alfaiataria masculina, mas com detalhes que a distorcem em algo mais lúdico e sensual: mangas longas demais, botões dourados em forma de olhos, ombros que crescem como esculturas e cinturas quase apagadas.


O surrealismo, herança central da casa Schiaparelli, não aparece aqui em gritos ou efeitos chocantes, mas em sutilezas: um zíper que termina em uma escultura, uma bolsa que parece suspensa no ar, brincos que desafiam a simetria do rosto. Em um dos vestidos mais comentados da noite, uma camada de tule quase transparente flutua sobre um corpo dourado de bordados manuais, criando um efeito de ilusão ótica: é pele? É escultura? É vestimenta? É arte?


Roseberry também brinca com o conceito de “memória costurada”. Algumas peças são como colagens tridimensionais de tecidos que remetem a outras épocas: cetins espessos com ares de cortinas palacianas, rendas que parecem desbotadas pelo tempo, bordados que lembram tapeçarias medievais. Tudo isso é costurado com uma precisão quase obsessiva, reafirmando o savoir-faire da maison e a força da alta-costura como resistência ao efêmero.


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A paleta se mantém majoritariamente em tons sóbrios: preto, branco, dourado antigo, marfim e um vermelho escuro que surge como sangue em meio à neutralidade. Os acessórios são tão importantes quanto as roupas: sapatos esculturais, luvas de couro que sobem até os ombros, gargantilhas de metal trabalhado como armaduras, e bolsas que mais parecem objetos de arte de um museu futurista.


O cenário do desfile, minimalista e envolto em sombras profundas, reforça a ideia de um mundo entre dois tempos. Não estamos exatamente no passado, mas tampouco em um futuro high-tech. A Schiaparelli deste inverno parece suspensa no tempo, criando sua própria cronologia, onde a memória e a fantasia coexistem.


Ao revisitar o marco de junho de 1940, a partida de Elsa Schiaparelli de Paris rumo a Nova York, Roseberry enfatiza mais do que um ato de sobrevivência: ele resgata uma virada criativa. O resultado é uma estética que reverencia sem retroceder, que reinterpreta sem reiterar. Tecidos tradicionais, como lãs Donegal e cetins escorregadios, se fundem a interpretações tridimensionais que desafiam o corpo e os sentidos. Há vestidos bordados com motifs anatômicos, silhuetas que flutuam e jaquetas reinterpretadas que emolduram o ombro com a assinatura Schiaparelli.


Em sua fala final, Roseberry adverte contra a romantização do passado. Olhar para trás faz sentido somente se isso nos impulsionar a construir significado no presente. O surrealismo, segundo ele, permanece uma das chaves mais lúcidas para imaginar hoje o futuro.


A estreia da semana de alta-costura foi mais do que uma apresentação de moda: foi um espetáculo. As celebridades, modelos e influenciadores reforçaram o clima onírico que fluiu muito antes do início da passarela. Entre elas, a rapper americana Cardi B chamou atenção não só por sua presença, mas pela escolha inusitada: ela apareceu com um corvo vivo como acessório para fotos. O gesto gerou desconforto imediato ao chocar a estética teatral da haute couture com uma tensão real, aquela entre o fetiche visual e o respeito à vida animal.


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Esse uso de um animal vivo no tapete vermelho nos coloca diante de uma questão urgente: até que ponto o ornamento estético justifica o uso de seres sencientes? O corvo, símbolo de inteligência e misticismo, acabou convertido em adereço, desafinando com o discurso de um futuro consciente. Mesmo que temporária, essa imagem rompeu os limites do que é aceitável e ressoou além da moda, abrindo a discussão sobre a nossa relação com os animais, agora, não apenas com os logos dos bordados (como as onças bordadas ou camarões em acessórios), mas com seres que sentem, vivem e merecem consideração.


O efeito colateral foi potente: o desfile deixou de ser apenas um desfile e se tornou palanque de um debate inadiável sobre ética, estética e ativismo, um entrave entre a beleza projetada e as consequências reais das escolhas feitas sob holofotes.


Numa moda que se projeta para o futuro, é essencial que o olhar estético caminhe junto com uma postura ética e responsável. Celebrar o manual do ateliê, o tempo vivo do fazer e a escolha de materiais e símbolos conscientes pode ser a revolução individual mais sólida contra a efemeridade industrial. A Schiaparelli de Roseberry traz isso: uma reconexão com o passado para avançar, mas a polêmica do corvo nos relembra que avançar também exige empatia e respeito por todas as formas de vida. A verdadeira radicalidade, afinal, está em construir um futuro que brilhe sem ofuscar a dignidade dos seres que, mesmo silentes, carregam histórias, sentidos e direitos.



Eai, SF Reader? Isso ainda é so moda ou ja passou dos limites?





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