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A linha entre arte e censura ainda é traçada por quem tem o poder

  • Eduarda Sodré
  • 13 de mai.
  • 2 min de leitura

O Festival de Cannes, ícone global da celebração cinematográfica, inaugurou sua edição deste ano com uma atualização significativa e controversa, em seu código de vestimenta. A partir de agora, está vetada qualquer forma de nudez no tapete vermelho, mesmo que parcial, assim como vestidos com caudas longas que atrapalhem a circulação. A justificativa oficial é funcional: manter a fluidez do evento e preservar a “decência”. Mas há mais em jogo do que logística ou tradição. Há um discurso sendo costurado, silenciosamente, entre tecidos e silhuetas.


É curioso observar que o mesmo festival que ovaciona filmes onde o corpo é explorado em toda sua vulnerabilidade, nu, sexualizado, livre, escolhe restringir esses mesmos corpos quando não estão sob o controle da câmera. No cinema, o nu é estética, linguagem, metáfora. No tapete vermelho, o mesmo corpo, se vestido por vontade própria em transparência ou ousadia, torna-se incômodo. O que separa a arte da “indecência”? A lente do diretor? A ausência de roteiro?


Essa distinção revela algo profundo: o valor da liberdade criativa continua sendo mediado por quem detém o poder de autorizá-la. Quando um corpo aparece nu num longa-metragem premiado, sua exposição é legitimada porque serve a uma narrativa, a uma intenção artística dirigida. Fora disso, na espontaneidade do tapete vermelho, o mesmo corpo passa a ser percebido como um excesso, uma ameaça à ordem simbólica. O problema, então, não é o corpo em si, mas quem o controla.


É evidente que o cinema e a passarela do tapete vermelho não são o mesmo espaço. Um propõe obras, o outro representa celebração. Mas essa separação tem sido usada como justificativa para limitar expressões individuais, especialmente femininas, fora da moldura autoral. E, nesse processo, o corpo autônomo acaba sendo policiado.


A moda, por sua vez, nunca foi inocente. Embora celebrada como forma de expressão e subversão, ela também carrega códigos próprios de exclusão. Nem todo corpo tem o mesmo espaço para se expressar através das roupas; nem toda ousadia é recebida como estilo. Durante décadas, e ainda hoje, o mundo da moda impõe limites rígidos sobre quais corpos são visíveis, quais são desejáveis e quais devem permanecer invisíveis.


Por isso, a decisão de Cannes não pode ser lida apenas como censura conservadora. Há, sim, uma tentativa de manter o foco no cinema, num momento em que o tapete vermelho muitas vezes é tomado por dinâmicas de autopromoção, impulsionadas pelas redes sociais e pela cultura de influência. O evento tem tentado evitar que a estética do espetáculo desvie a atenção da arte cinematográfica.


No entanto, mesmo que a intenção seja preservar o espírito do festival, o gesto de restringir o vestir carrega uma mensagem inquietante: o corpo ainda é território regulado, a aparência ainda é política, e a liberdade de se apresentar continua sendo um privilégio condicionado.


No fundo, essa norma não fala apenas sobre tule, transparência ou metros de cauda. Fala sobre controle. Sobre quem tem o direito de usar o próprio corpo como narrativa sem precisar da autorização de um diretor, de um script, de uma instituição. E sobre como, mesmo em espaços dedicados à imaginação e à invenção, a criatividade ainda encontra limites, muitas vezes desenhados na bainha de um vestido.


Eai, SF Reader? O que você achou dessa nova mudança?

 
 
 

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