top of page

Bella Freud e o estilo como reflexo do inconsciente

  • Eduarda Sodré
  • 4 de jun.
  • 5 min de leitura

ree

Bisneta do lendário pai da psicanálise, Sigmund Freud, Bella Freud carrega em seu nome uma herança intelectual poderosa. Mas, ao invés de seguir os caminhos clássicos da psicologia clínica, ela traçou sua própria trajetória no universo da moda, sem jamais deixar para trás as questões profundas da mente humana. Estilista britânica consagrada, Bella se destaca por unir dois campos que, à primeira vista, parecem distantes: moda e psicologia. Para ela, a roupa que escolhemos vestir todos os dias vai muito além da estética: é linguagem, identidade, memória e emoção.


Desde a infância, Bella desenvolveu uma percepção aguçada sobre o vestir. Ela compreendeu, muito cedo, que a moda não era apenas uma questão de tendências, mas uma forma de comunicar quem somos, de nos proteger do mundo, e muitas vezes, até de nós mesmos. “O que vestimos diz muito sobre como nos sentimos, sobre como queremos ser vistos e sobre o que estamos tentando esconder ou revelar”, afirma. Com essa visão complexa e humanizada, ela propõe uma leitura emocional da moda, transformando o guarda-roupa em um espelho da psique.


Essa perspectiva desafia a visão dominante que ainda associa a moda à superficialidade e ao consumo vazio. Ao ser analisada sob o olhar sensível de Bella, a roupa se revela como manifestação simbólica de experiências emocionais, conflitos internos e até mecanismos de defesa inconscientes. Em vez de apenas cobrir o corpo ou seguir tendências, o ato de se vestir passa a ser compreendido como uma ação carregada de sentido, capaz de expressar negações, desejos, inseguranças ou afirmações. Cada escolha, por mais simples que pareça, pode conter uma narrativa subjetiva. A moda, nesse contexto, não é banal: é gesto íntimo, silencioso, e muitas vezes, terapêutico.


A ligação entre o vestir e a construção da identidade também é central em sua abordagem. As roupas que usamos mudam conforme nossas fases de vida, refletindo, em muitos casos, não apenas mudanças de estilo, mas também transformações internas. Durante a adolescência, por exemplo, o vestuário pode representar tanto o anseio por pertencer a um grupo quanto a tentativa de afirmar singularidade. Já na vida adulta, as escolhas estéticas podem acompanhar processos de amadurecimento, rupturas emocionais ou reinvenções pessoais. Dessa forma, a moda se torna testemunha e cúmplice dos ciclos que compõem a jornada de autoconhecimento.


Foi com esse olhar reflexivo que Bella deu vida ao podcast Fashion Neurosis, um espaço onde moda e psique se encontram de maneira inusitada e potente. A pergunta que norteia cada episódio, “Por que você escolheu essa roupa hoje?”, funciona como ponto de partida para conversas profundas sobre sentimentos, traumas, desejos e inseguranças. A cada convidado, o programa revela como escolhas aparentemente triviais podem revelar camadas ocultas do inconsciente. O podcast, mais do que uma conversa sobre estilo, funciona como uma sessão de análise disfarçada, em que o vestuário abre caminho para histórias emocionais e memórias afetivas.


Esse formato evidencia como o cotidiano é atravessado por significados que muitas vezes ignoramos. A roupa, assim como os sonhos ou os lapsos de linguagem na psicanálise, pode conter símbolos e mensagens latentes. Aquilo que vestimos pode ser armadura ou vulnerabilidade; pode revelar uma faceta ou esconder outra. Há sempre uma tensão entre exposição e proteção, entre o que se quer comunicar e o que se deseja camuflar. A superfície do corpo vestido, portanto, transforma-se em cenário de expressão emocional, um reflexo das contradições e complexidades que habitam o interior de cada indivíduo.


Nessa interseção entre o eu e o outro, a moda também assume papel social. Ela não se limita ao desejo individual, mas está constantemente em diálogo com normas, expectativas e padrões coletivos. Ao mesmo tempo em que permite afirmação pessoal, também impõe desafios de pertencimento e reconhecimento. O que escolhemos vestir passa a carregar o peso do julgamento alheio, das convenções de beleza e dos códigos culturais. Surge, então, um embate sutil entre autenticidade e adaptação: até que ponto somos fiéis a nós mesmos ao nos vestirmos? E quanto estamos dispostos a ceder para sermos aceitos?


Com sua voz serena e acolhedora, Bella transforma o ato de vestir em um caminho de escuta e introspecção. Cada peça, um casaco, um colar, um par de sapatos, é tratada como porta de entrada para o universo emocional de quem a usa. Em suas reflexões, ela desconstrói a ideia de que moda é futilidade e revela sua potência como linguagem afetiva e instrumento de construção subjetiva. O vestir, em sua leitura, pode tanto disfarçar a dor quanto celebrar a alegria; pode ser símbolo de resistência, memória afetiva ou tentativa de reconciliação com o próprio corpo.


Essa dimensão sensível da moda também se manifesta na relação entre o corpo e a roupa. O modo como vestimos determinadas partes de nós mesmos pode indicar zonas de conforto ou conflito, desejos de esconder ou de mostrar, gestos de carinho ou de censura. Muitas vezes, sem perceber, usamos roupas como extensões do toque, como barreiras de proteção ou como formas de moldar aquilo que queremos sentir. Ao vestir o corpo, tocamos também a psique, e com isso reconfiguramos, ainda que momentaneamente, a forma como nos percebemos e nos posicionamos no mundo.


Quando compreendido como um gesto emocional, o guarda-roupa deixa de ser um acervo de consumo e passa a ser um território de elaboração interna. Cada tecido, corte ou cor pode carregar sensações específicas, funcionando como canal de regulação emocional e comunicação silenciosa. Perguntas como “o que essa peça desperta em mim?” ou “como ela altera minha presença no espaço?” ganham relevância nesse processo. Ao vestir-se, o sujeito não apenas se adorna, mas se afirma, se protege, se revisita. O corpo, então, passa a ser palco simbólico onde identidade e afeto se entrelaçam.


A psicanálise, com sua atenção ao simbólico e ao inconsciente, oferece uma lente privilegiada para interpretar essas manifestações sutis. Assim como os sonhos podem revelar desejos reprimidos ou conflitos não elaborados, as roupas também carregam vestígios de histórias pessoais, referências afetivas e fantasias latentes. Um vestido pode evocar a imagem de uma figura materna; uma jaqueta pode remeter a uma fase de rebeldia; um sapato pode simbolizar força ou fragilidade. Nesse sentido, o corpo vestido torna-se uma superfície onde conteúdos emocionais ganham forma, textura e presença.


Em uma entrevista à BBC, Bella compartilhou uma lembrança marcante de sua infância: o momento em que, aos dez anos, colocou uma camiseta de menino e, ao se olhar no espelho, sentiu uma força inédita. Aquela sensação de empoderamento, vinda de um simples gesto, a acompanharia por toda a vida. Foi a partir dessa experiência que ela começou a entender como o vestir impacta não apenas a forma como somos vistos, mas principalmente como nos sentimos e nos habitamos. A moda, para ela, é um caminho de expressão emocional, uma extensão visível daquilo que nos atravessa por dentro.


Esse episódio inaugural ilustra com clareza como as roupas podem funcionar como ativadores de estados emocionais e marcadores simbólicos da identidade. A escolha de uma peça pode não apenas refletir um estado de espírito, mas também provocar uma transformação interna. Há, nesse gesto, uma oportunidade de elaborar e dar forma ao que muitas vezes não conseguimos nomear. A moda, então, deixa de ser um fim em si mesma e passa a ser meio: meio de autoconhecimento, de elaboração afetiva e de reconfiguração da própria presença no mundo.


Na interseção entre moda e psicologia, Bella Freud inaugura um território fértil de reflexão sobre a condição humana. Mais do que estilista, ela se consolida como uma intérprete da alma por meio do tecido. Sua obra nos convida a olhar o vestir como uma prática de escuta de si, um ritual que transcende o espelho e alcança as camadas mais profundas do ser. Moda, em sua visão, não é sobre consumo ou vaidade: é sobre narrar quem somos, mesmo quando ainda não sabemos ao certo. É sobre humanidade.




Eai, SF Reader? O que sua roupa está dizendo por você, mesmo quando você não diz nada?

Comments


Inscreva-se em nossa newsletter semanal!
Fique por dentro de todas as novidades do mundo da moda.

 

Obrigado pelo envio!

  • TikTok
  • White Instagram Icon

© 2035 por SodréFashion

bottom of page