Do quadro ao corpo: o surrealismo que habita a Schiaparelli
- Eduarda Sodré
- 4 de nov.
- 3 min de leitura

O surrealismo surgiu no início do século XX como uma resposta à rigidez da razão e à descrença na lógica que dominaram o mundo após a Primeira Guerra Mundial. O movimento, liderado por André Breton, propunha uma arte que nascesse do inconsciente, dos sonhos e daquilo que escapa ao controle racional. Era uma tentativa de libertar o pensamento humano e a criação artística das convenções impostas pela sociedade. Pintores como Salvador Dalí, René Magritte e Max Ernst exploraram essa liberdade, criando imagens absurdas, poéticas e provocantes, que pareciam desafiar o real. O surrealismo, então, não era apenas uma estética, era uma filosofia sobre a imaginação como forma de verdade.
Foi nesse contexto que Elsa Schiaparelli encontrou seu espaço. Italiana de nascimento e parisiense por destino, ela revolucionou a moda ao romper com a ideia de que a roupa existia apenas para vestir o corpo. Para Schiaparelli, o vestuário era uma extensão da mente, uma tela em que o inconsciente podia se manifestar. Amiga íntima de Salvador Dalí e Man Ray, ela transformou o surrealismo em tecido, costura e textura. Em uma época em que a alta-costura prezava pela elegância discreta, Elsa ousou fazer vestidos com estampas de esqueletos, chapéus em formato de sapato e fechos em forma de bocas e olhos. Cada peça era uma espécie de sonho materializado, uma ironia refinada sobre o que se esperava da mulher e da moda.
A relação entre o surrealismo e Schiaparelli é, antes de tudo, uma tradução entre linguagens: aquilo que na pintura se manifesta como imagem impossível, na moda se revela como forma vestível do inconsciente. O que Dalí fazia com pincéis, Elsa fazia com agulhas, ambos exploravam o choque entre o real e o imaginário, o belo e o estranho, o consciente e o sonho. Enquanto os artistas surrealistas buscavam provocar o olhar e libertar o pensamento por meio de símbolos e distorções visuais, Schiaparelli levava essa mesma lógica para o corpo, tornando-o palco de uma arte que se move, respira e habita o cotidiano. Assim, ela transformou a moda em uma experiência estética e psicológica, em que o vestir deixava de ser apenas vaidade para se tornar expressão de pensamento.
Schiaparelli não queria apenas criar roupas bonitas, mas provocar sensações, reflexões e desconfortos. Ela brincava com a percepção, fazia o público duvidar do que via. Um simples detalhe podia transformar o comum em extraordinário. Essa maneira de pensar se tornou a essência da marca, que permaneceu associada ao imaginário surrealista mesmo após o fechamento da maison original.
Décadas depois, quando Daniel Roseberry assumiu a direção criativa da Schiaparelli, o desafio era enorme: como traduzir o surrealismo de Elsa em um mundo contemporâneo, onde o absurdo já parece cotidiano? Roseberry encontrou a resposta no equilíbrio entre respeito e reinvenção. Ele manteve o espírito provocador e artístico da fundadora, mas atualizou sua linguagem, explorando formas escultóricas, silhuetas arquitetônicas e elementos anatômicos que misturam o humano e o divino.
No último desfile, a Schiaparelli reafirmou essa herança surrealista com maestria. As peças transformaram o corpo em obra de arte, bustos dourados, ombros exagerados, olhos metálicos e estruturas que pareciam flutuar. Havia algo de inquietante e sublime em cada look, como se as modelos caminhassem entre o sonho e a realidade. O desfile não era apenas uma coleção de roupas, mas uma narrativa visual sobre imaginação, identidade e poder.
O que torna a Schiaparelli tão fascinante é justamente essa capacidade de permanecer fiel ao que o surrealismo sempre propôs: libertar o olhar. Em cada costura, há um convite para enxergar o mundo de outro jeito, menos racional, mais simbólico, mais livre. Quase um século depois, o diálogo entre o surrealismo e a Schiaparelli continua vivo, provando que a arte, quando se veste de ousadia, nunca envelhece.
Eai, SF Reader? O que acha do surrealismo no mundo da moda?



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